segunda-feira, 2 de setembro de 2013


TUAS MÃOS

Tuas mãos lavam pratos,
torcem panos, limpam o chão.
Estendem e passam roupas;
escovam chinelos, sandálias, sapatos; 
arrumam canos, tiram o pó. 
Mexem panelas, temperam comidas,
batem bolo, amassam pão.
Preparam almoço e jantar.

Cavam a terra, regam plantas!
Cansadas, abrem livros, viram páginas.
Tentam se distrair...
Tocam o corpo no banho,
em exame de rotina.
Diante do espelho,
ajeitam o cabelo, passam batom.
Pousam na testa do filho,
tirando a febre.

Excitam o parceiro que pede afago.
Sem joias e adereços,
bem alto, sobre a cabeça,
seguram as velas na procissão.
Juntam-se e elevam em oração.
Tuas mãos humildes e humanas,
macias ou calejadas,
são a tua salvação. 


sábado, 31 de agosto de 2013


MINHA URGÊNCIA


Nasci e vivi minha infância numa casa construída no pé de uma montanha. Tinha mato por todos os lados, um precipício abaixo e muitas montanhas à frente. Assim, a vista sempre acabava num obstáculo.
A mais veemente lembrança que tenho de ‘uma vista longa’ é a das chuvas de verão. O tempo se armava, o céu escurecia, algumas trovoadas e relâmpagos. Eu sentava na ponta da calçada, deixava as pernas balançando no ar, estendia os olhos sobre as montanhas que logo começavam a branquear. Parecia uma cortina de voal descendo sobre a terra. Primeiro cobriam-se as cordilheiras mais distantes, depois o precipício abaixo e em poucos minutos a chuva já molhava o verde dos potreiros e chegava nos meus pés. Às vezes eu me deixava molhar, mas logo ficava com frio e corria para a varanda da casa. 
Em todos os outros lugares que habitei depois, a vista era curta. Tinha sempre casas nos lados, ou à frente, atrás, ou mais que isso: arranha-céus, postes de cimento, rede elétrica, barulho de cidade e muita gente. E este ‘reboliço’ me acompanha vida afora.
Hoje, num destes instantes que Clarisse Estés denomina ‘volta ao lar’ das mulheres, me deparo com uma necessidade latejante: preciso muito ter uma paisagem larga e longa na minha janela ou varanda, escorrendo sob meus olhos. Poderá ser uma várzea com plantações e estradas, um lago, mata, rio, parque... Mas de preferência o mar! Não importa o que seja, desde que seja o que me baste. Não quero mais obstáculos à minha visão. Quero dormir e acordar com esse ‘calmante natural’. Quero ver longe para sempre. É isto que desejo, este é meu ânimo, minha busca, minha paz. Com urgência, silêncio e sem interrupções.

sábado, 10 de agosto de 2013

Esta música é pura poesia. Ney Matogrosso interpreta ela no show "atento aos sinais". D+



Noite torta

na sala numa fruteira
a natureza está morta
laranjas, maçãs e pêras
bananas, figos de cera
decoram a noite torta
sob a janela do quarto
a cama dorme vazia
encaro nosso retrato
sorrindo sobre o criado
no meio da noite fria
está pingando o chuveiro
que banho mais apressado
molhado caíste fora
no espelho minh'alma chora
lá fora está tão gelado
sozinha nesta cozinha
em pé eu tomo um café
na pia a louça suja
me lembra da roupa suja
no tanque que a vida é
.     (Itamar Assumpção)

sexta-feira, 26 de julho de 2013


AMOR DE INVERNO

Quatro pés gelados,
Dois corpos deitados,
Nenhum ar condicionado.
Minutos passados -
O inverno se torna ausente.
Restam cobertores molhados
Do suor salgado e quente.


PENSAR DÓI



Hoje deixaria esta página em branco. Ideias dispersas, escassas. Mente inquieta. Terei que pensar para escrever.

Pensar dói. Texto doído sai sofrido, sem a graça da inspiração.

Matemática é cálculo, concentração, solução. Dói para o menino da escola a divisibilidade, potenciação, radiciação, a geometria. Dói tanto que ele erra até os mínimos cálculos de adição. A dor rouba sua atenção. Dói em mim a dificuldade dele. Mas esta dor não é minha.

A minha dor é com as palavras que me faltam; os verbos que não conjugam; os versos que não rimam.

Dor de escritor.

domingo, 2 de junho de 2013


Estável tarde de domingo.
Céu fechado, sol amuado,
Abdicando de aparecer.
Na ampla sala do meu lar
Apenas o rumor do ar quente.
Deitada no sofá esfolado,
Minha gata balofa e surda,
Sempre se dando a Morfeu.
Ai, que inveja desta cena!
Quem me dera um sono assim!
Eu, sempre cabal inquietude,
Procuro sossego e...
Silencio em mim.


terça-feira, 23 de abril de 2013


 
REENCONTRO     


Estou aqui a rabiscar sobre as linhas vazias de um resto de caderno, empacada num poema que insiste em não nascer. Mais uma vez um parto difícil. O pior é que o sinto latente, espremendo meu ventre, querendo rasgar-me a carne, sangrando-me de dores. Mas, nada! Apenas algumas palavras perdidas, sem nexo nem sucesso. O que será que me travou assim?
Terá sido este longo e friento inverno? O tempo sobrando que eu nunca acho? As panelas, os gatos, as roupas, os pratos...?
          Parece que me perdi nesta vida doméstica que não se recicla e já nem sei embaixo de qual tapete ou sobre qual armário me deixei acomodar.
No ímpeto de ressurgir-me, saio a caminhar até a Redenção: passo pelo laguinho e chego às bancas da feira. Sinto o cheiro das flores de pêssego, do melado na pipoca, do incenso e outros tantos. Meu instinto já desperta, conspirando ao meu favor.
E, no café do Maomé, reencontro meu sabor. 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Voltei!

Um bom 2013, com quatro meses de atraso, a todos meus leitores.

Me perdoem a distração e ausência, mas eu sou mesmo assim, uma

Metamorfose Ambulante:

Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
...
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor

Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
          (Raul Seixas)

A TORTA DE DAMASCO


          Coisa que mais gosto é ir ao shopping num dia qualquer, sentar num café e lambuzar-me com uma fatia de torta ou outro doce, água mineral com gás e um carioquinha.
Numa tarde de final de fevereiro, pedi uma fatia de torta de damasco que estava me esperando, linda, iluminada e recheada, na vitrine da Bella Gula. A fatia custava sete e noventa, mais o café, foi doze reais.
           Cheia de satisfação abocanhei a primeira garfada. Fechei bem os olhos para sentir melhor o sabor do doce. Abri os olhos para uma nova sequência de garfadas, quando começo a pensar na careza daquele meu prazerzinho. Com quinze reais faço uma torta de damasco na minha cozinha, o que significa que estou comendo uma ínfima fatia pelo mesmo preço com que poderia estar comendo meio bolo, no mínimo. Mas aí tem o trabalho de fazer. Tem que ir ao super, comprar os ingredientes, cozinhar os cremes, fazer o bolo, montar a torta, deixar esfriar, e só depois comer. E o pior é a pia cheia de louça para lavar, eu suando na boca do fogão, açúcar nos cabelos, meleca nas mãos. 
           Volto para a fatia, já na metade. O que estou pagando afinal? Nesta fatia deve estar ‘recheado’ o valor dos ingredientes de toda a torta, parte do salário do funcionário que a confeitou, a energia gasta, o aluguel do bistrô, os impostos, o percentual do lucro do proprietário da franquia e sem dúvidas, o lucro daquele que menos participou da produção: o dono da rede confeiteira. 
            Bebi o último gole do café. Dei a última garfada no bolo, já meio enjoada daquele prazer. E nem considerei, na análise econômica, o valor da água com gás.