sexta-feira, 29 de julho de 2016

FIM DE TARDE


Desde criança os fins de tarde me trazem certa melancolia. Nunca pude identificar exatamente que sentimento é esse. No passado era uma mistura de saudade do dia que se acaba, ansiedade do escuro da noite que sombreia o horizonte, e a incerteza de um amanhã que está por vir. Hoje, olho pela vidraça da minha sala de estar, o sol curto de inverno, manda um breve adeus. Tão breve que quando chega sua hora derradeira, mal consigo apreciar sua beleza, exprimir um sorriso cor-de-rosa e deu. Ele se foi. E tudo ao meu redor passa a ser meio temeroso. Os móveis que já não avisto direito, os carros na rua, com os faróis baixos acesos; gatos miando nos telhados e um frio na minha barriga. Não alcanço o interruptor de energia para acender a luz. Um mal estar me assola por dentro. Alguma coisa na noite me traz aflição. E esta paralisia é somática. Como se o movimento fosse evocar lembranças que não desejo mais ter. Travo uma luta entre meus sentimentos e a realidade. Gostaria mesmo que este sol se estendesse por mais tempo. Que o dia não fosse tão breve e a noite não se demorasse tanto.
O barulho da porta me traz ao presente. Meu filho chega da rua com toda agitação e energia próprios da idade. Passa como num pé de vento e só ouço a frase ‘me faz um lanche que vou pro treino’.
As pernas me carregam até a cozinha e minhas vontades já não existem mais. Agora é atender ao pedido que meus ouvidos acataram. Penetro na realidade junto com o cheiro de bacon que sai da torradeira. A noite pende inteira lá fora. E só resta abafar meus receios na precisão das horas. 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O VALOR QUE SE DÁ


O dia amanhece nublado, outra vez. É inverno, normal. Acordo e abro a veneziana do meu quarto, devagar, com medo do tempo estar fechado. E está!
É sábado, e eu quero sol. Mas a natureza é quem sabe, é quem manda. Penso no valor que tem um dia de sol. Ele aquece, energiza, estimula a vitamina D, anima a vida. Quando tem sol sentimos vontade de abrir as janelas da casa, de estender roupas no varal, de caminhar no parque, tomar chimarrão na praça, levar o cachorro pra passear.
Penso no valor que tem tudo aquilo que nos falta ou que não vemos. Neste sábado foi o sol. Noutros dias são pequenas coisinhas que se tornam enormes se não as temos ao nosso alcance. O abraço de um filho, o colo da mãe, a palavra de apoio do pai, o aconchego de um lar. O afeto de um amigo, um ombro que nos acolhe. A flor no jardim, no vaso da sala, ou na beira da estrada. O cobertor que aquece. O cheiro de um café passado, e tantas outras coisas valorosas que se perdem no infinito das horas.
Enquanto conjecturo, o céu vai se abrindo, e já sinto alguns raios do sol latejando no  meu rosto. Momento, para mim, de valor inestimável. Um bem que não troco por nada. Nenhum suborno privar-me-ia do prazer que este sol me dá. Pequenos prazeres, grandes satisfações.
E assim é a vida. Como um bolo recheado de vários sabores. Tem gente que valoriza uma dedada de merengue, outros uma colherada de recheio ou uma fatia generosa. Mas tem os que não se saciam. Empanturram-se com o bolo todo e nem sentem o sabor das camadas.  E os farelos restam pras formigas, que por saber dar valor, ficam com a melhor parte. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

QUEM SOU

Nascemos dependentes, parte de nossas mães. Com afeto e alimento, crescemos. Afeto muitas vezes falta. Alimento, em certas circunstâncias também. Assim vamos evoluindo. Caminhamos, falamos, brincamos, estudamos. E chega a adolescência. A personalidade está formada. As impressões da primeira e segunda infância, boas ou ruins, já estão impregnadas. No decorrer do tempo vão-se mostrando. Na busca da identidade é que, muitas vezes nos perdemos. E nesse caminho tortuoso, acertando e errando, é que sofremos e crescemos. Uns mais, outros menos.
Nossa identidade é algo que vai mudando com o passar dos anos. E muitos chegam aos cinquenta sem saber exatamente quem são. Como diz Fernando Pessoa: o eu profundo e os outros eus! Alguém também disse que somos três: aquele que pensamos ser, aquele que os outros veem e o que somos de verdade. É aí que está o xis da questão: quem somos de verdade?
Eu sei que tenho vários  eus. E certa vez escrevi: ‘gostaria de poder agradar todas as mulheres que me habitam’. Mora em mim a filha, a mãe, a esposa, a amante, a dona  de casa que eu não queria ser, a profissional que eu não consegui ser, a escritora e mais as outras tantas que perdi pelo caminho.
A escritora é quem insiste em ficar e eu luto pra manter. Essa me faz bem. E quando sofro e choro é na ponta da caneta que busco consolo. E quando estou animada e feliz, ela palpita comigo.
Dessas várias personalidades que me habitam, algumas, sinceramente, eu gostaria de exonerar, me despojar. Outras eu aprecio e convivo bem.
Mas a escritora, intensa, sensível, delicada e complicada, se sobreexcede.  Resistente, inventiva e contumaz, sobrevive a todas as demais.
Essa me incita, me abriga e me liberta. Só nela encontro paz e sossego pra minha mente inquieta.