domingo, 9 de janeiro de 2022

 

O MUNDO DE MAIKON

Todas as manhãs caminho na pista de 200m que tem numa praça perto da minha casa. Tem muitas árvores e uma passarada permanente que sobrevoa de um galho para outro, fazendo ninhos, cantando, criando filhotes. É um alvoroço!

Eu faço vinte voltas, o que resulta em quatro quilômetros. É nesse momento do meu dia que entra o Maikon. Ele é um rapaz com problemas, não sei que tipo de retardo ele tem, nem qual o CID, mas o comportamento dele é incrível. Ele incorpora personagens e vive intensamente no mundo que ele imita. Muitas vezes ele está na praça caminhando também. Quando me vê dá bom dia e começa me acompanhar na caminhada. Incorpora o instrutor da academia que tem próximo dali, onde ele costuma ficar quase o dia todo. Caminhando ao meu lado ele vai corrigindo minha postura, lembrando que tenho que caminhar reta e coloca o dedo no meu abdômen dizendo: ‘postura, postura’. Eu me corrigo e sigo. Ele continua no papel de meu treinador: ‘respira, respira, abdômen contraído’. Pergunto sobre a namorada dele. Ele diz que ela está na academia. Daí comenta que de tarde é instrutor numa academia lá na Protásio Alves, e que vai de bicicleta até lá. Então ele para de caminhar, mas continua ‘me instruindo’. Encostado na barra de ferro onde a gente se alonga, ele permanece com a postura idêntica do treinador da academia. Quando eu termino a caminhada e vou para os abdominais ele continua me corrigindo. De punho fechado, bem como se faz depois da pandemia, ele dá tchau e sai rumo à academia. Noutros dias já vi Maikon com uma roda de direção de veículo que alguém deve ter conseguido para ele, e também um crachá da companhia de ônibus que circula no bairro. Ele diz que é ‘motorista da Carris’. Então desempenha intensamente este outro papel.

Confesso que às vezes sinto inveja do Maikon. Vontade de viver outro personagem, que não fosse eu mesma. Viver, por alguns instantes do dia, a vida de outro, de preferência alguém que admiramos, deve ser uma experiência incrível. Sair da nossa realidade em momentos oportunos, eu acredito que pode nos fazer um bem enorme.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

 

SÓ HOJE

 Hoje fez um lindo dia de sol. O ano está quase no final e a pandemia está sob controle, ao menos aqui no Brasil. Já passamos pelo outubro rosa, indo para o final do novembro azul. A vida passa rápida, enquanto nos jardins e quintais, as flores e plantas têm seu tempo certo de plantio, germinação, colher e florescer. Dentro de mim, o coração bate normalmente, mesmo assim consultei um cardiologista, que ouviu meus sinais e disse que eu não tenho sopro no coração, mas pediu exame ergométrico, entre outros. Talvez clinicamente meu coração esteja são, mas emocionalmente está abalado. Uma saudade bandida me aperta o peito, lembrança de alguém que foi muito importante na minha vida; saudade do que deixei de viver, saudade da época da juventude, tempo em que tudo é muito fácil e se resolve rapidamente na emoção.

Hoje, só hoje, eu queria ter aquele alguém que me abraçasse forte e dissesse: vai ficar tudo bem, eu estou aqui, confie em mim! Estou tão precisada e carente disso. Tem uma música do Djavan que diz mais ou menos assim: ‘sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar’. Sinto-me assim, hoje, tendo que ter e não ter para dar. E também precisando de alguém que também não tem para me dar. Poderia ser tudo tão mais fácil, mais leve e alegre. Contudo, as picuinhas da vida, vão nos arrastando para um vale de lágrimas, e tudo o que era para ser azul claro, acaba num grande borrão.

Hoje, ‘eu preciso te abraçar, sentir teu cheiro de roupa limpa, pra esquecer os meus anseios e dormir em paz’. Essa música cantada pelo Jota Quest, me define. Preciso da segurança que tu me passava, a certeza de que por trás daquele teu olhar intenso, da gravata vermelha combinando com o terno azul escuro, e do cheiro de Poisson, estava toda a fortaleza que eu preciso para repousar e sossegar meu coração.

Hoje, a incerteza, a insegurança, a instabilidade, estão norteando meus dias e eu sinto uma angústia sem fim. Vai passar, eu sei, mas enquanto não passa, o nó na garganta, o aperto no peito, o pânico, me sobressaltam. Se o tempo não tivesse te roubado da minha vida há tantos anos, se tivéssemos tido a oportunidade de encarnar num tempo único para nós dois, poderíamos ter vivido nosso grande amor. Mas poucas coisas são justas e perfeitas, talvez depois de hoje, outro dia será possível. 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

 O CÃO E SEU DONO

Sempre que caminho no parque aquele cara está lá passeando com seu cão. Chama-me atenção a sobriedade daquela pessoa, sempre com olhar distante ou baixo, uns quarenta e poucos anos deve ter, cabelos crespos e escuros, pele amorenada, respondendo ao meu ‘bom dia’ em alto e bom som, apenas com um balançar de cabeça. Usa quase sempre a mesma roupa: uma calça jeans preta meio descorada, um blusão caramelo, de lã barata, e por cima uma jaqueta preta, Puff de nylon.

O cão é de porte médio, preto nas costas e parte da cabeça, com barriga e focinho amarelo queimado. O cara segura a guia e o cão o segue, os dois na mesma cadência, sem nada de pressa, como se tivessem a vida inteira só para aquele passeio. Mas a expressão no rosto cheio de vincos precoces mostra que aquele cara sustenta uma longa angústia existencial. Será que tem alguma doença psíquica? Será que não é feliz no casamento, ou nunca casou ou foi abandonado pela esposa ou pelo marido?

Enquanto vou marcando meus quilômetros de caminhada rápida, meu pensamento cogita todas as possibilidades de infortúnios que possam estar penitenciando aquele sujeito. E o mais interessante vocês precisam saber: o cão é a cara do dono, tanto na estética como no semblante.  Anda cabisbaixo, sem demonstrar qualquer reação a nada – nem às pessoas que transitam, nem aos outros animais que também passeiam no local. Eu olho para o cão e para seu companheiro humano e percebo um efeito espelho, uma simbiose resultante da comunhão de espaços e sentimentos. 

Uma coisa é certa: os dois se entendem muito bem e fazem um par perfeito, o que não acontece, na maioria das vezes, entre dois humanos.