sábado, 31 de outubro de 2020

 

PASSAGEM

No vocabulário, passagem é o lugar onde se passa, passadouro. E é nesta condição, de passageiros, que estamos aqui na terra, numa experiência ímpar. Hoje, enquanto fazia minhas vinte voltas na pista da praça, que ao final somam 4km, eu vi um bando de caturritas descer das árvores buscando alimento no chão, decerto minhocas e outros bichinhos deliciosos. Estava abafado e suei bastante. Antes de eu findar meu percurso as caturritas voltaram ao topo das árvores, imagino que satisfeitas. A passarada canta muito e tem um sabiá que todo dia canta uma mesma nota, em quatro tempos: Lá, lá, lá, lá. É eu chegar na praça e já ouço o tom em Lá maior.  Isso me faz lembrar que tenho que treinar no meu teclado.

Depois de uma hora de caminhada, chego em casa e faço alongamentos. Tudo isso demanda tempo e energia. Deitada, alongando, olhei o céu pela janela aberta e lembrei do infinito, do ar, do mar, da nossa passagem pela terra. É tão bom viver, mas não deve ser tão ruim assim morrer. Despir-se do corpo material, e nesse ‘nudismo’ deixar cair por terra todos os problemas que nos afligem; a necessidade de alimentar o corpo, de mantê-lo saudável; a obrigação de trabalhar para nosso sustento; a dificuldade de administrar conflitos familiares e de outras convivências; o dever de evoluir.

Diante dos séculos e milênios da existência humana neste planeta, o tempo da nossa passagem por estas bandas, por mais longo que seja, vira segundos. E ai de nós se não aprendermos cedo aproveitar a ocasião. A hora derradeira chegará para todos. Para alguns de forma trágica, para outros de forma natural, para uns em tenra idade, para outros na velhice. O traspasse é inexorável.

Acabo meus exercícios certa de que o passamento não deve ser algo tão adverso, principalmente quando se tem certeza que do outro lado da passagem, para todos nós, há um plano diferenciado daqui e que se desenrola de acordo com nossas ações.

 E é nesse inquietamento que acabo minha manhã, empenhada em fazer o melhor que posso para quando chegar meu ensejo, eu estar pronta para merecer o bilhete de ida para uma melhor.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

ROSÁRIO

Numa tarde de sexta-feira de inverno, recebi em casa aquela mulher. Corpulenta, de cabelos longos, espessos e escuros.  Entre trocas de sorrisos e abraços, convidei-a para sentar. Iniciou seu trabalho de manicure e nesse meio tempo, servi um chá para nós. Enquanto ela tirava os apetrechos do nécessaire, meus pés ficaram de molho na bacia de água morna.

Entre chás e cutículas, foi discorrendo intimidades. Ela me contava, com muito pesar, os descalabros do marido. Conhecera ele há vinte e quatro anos atrás, numa fábrica onde ambos trabalhavam; que se apaixonou logo e um mês depois, cheia de malas, ela se foi ao encontro dele para ficar; que alguns da família dele disseram: ‘filha, você é tão jovem e bonita, fica aqui não, volta para sua casa’. A mãe, a amiga, a vizinha... todas alertaram da aventura em que estava se colocando. Ela não ouviu ninguém, estava obstinada por morar com aquele homem. Logo veio uma filha, e já foi o tempo suficiente para aperceber-se do equívoco consumado. Tentou voltar para a casa dos pais, mas o homem foi atrás e a trouxe de volta. Engravidou do segundo filho, e as exiguidades só aumentaram. Ela ralava no trabalho da casa e o homem na boemia, cachaça, jogo e mulher, costumes próprios daqueles machos ribeirinhos. Vieram outros filhos e mais adversidades. Eram palavras de rebaixamento, maneiras egoístas, joguinhos emocionais... Junto com os anos que passaram, o corpo se transformou, os desgostos se multiplicaram, a autoestima zerou. O sofrimento foi enlutando seu coração e ela sustentava toda a dor daquele relacionamento abusivo. Agora, ‘fazia unhas’ para ter seu dinheirinho, porque ele colocava o pouco que ganhava na farra... e desatou em um choro só!

As lágrimas rolaram no seu rosto, desaguaram entre nossas mãos e desembocaram na bacia que molhava meus pés, e ali se diluíram. Foi um momento de comoção. Eu não sabia direito o que fazer, se confortava, se oferecia um copo d’água, se rezava, ou me aliava àquela tristeza toda e chorava também. Pude perceber o quanto aquela mulher, fisicamente forte, estava quebrada por dentro, frágil, desabrigada da vida e de si.  Amparei com as palavras de apoio que consegui produzir naquele momento doído. Era uma mulher como eu, guerreira, com seus dilemas e penas. Achei melhor parar o trabalho, servir mais chá.  Fiz mais, cortei um pedaço do bolo de milho quentinho que eu recém tinha tirado do forno e coloquei para nós. Mostrei interesse em ouvir, acolher, orientar.

Lá fora, o vento sudoeste soprava da Lagoa, sacolejando as vidraças, sinalizando mudanças. Nós duas, assim ficamos, tarde a dentro, desfiando nosso rosário da paixão, compondo sorrisos e tecendo projetos de liberdade.