terça-feira, 26 de abril de 2016

MEU BAIRRO



No bairro onde moro, crescem gramas entre as calçadas. Já vi até bem-me-quer. As ruas são meio tortas, desniveladas. Mesmo assim, alguns dias atrás a Prefeitura asfaltou a rua principal, que é a minha. Ficou bom, mas os carros agora correm mais. E isso não é bom para as crianças e jovens que gostam de brincar, conversar ou tomar cerveja na beira das calçadas.
Tem a Igreja, e todos os domingos de manhã e terças de tarde, reza-se missas. O pátio da Igreja é amplo, com um bonito jardim e uma escada que vai da rua até a porta do templo. Em junho de todos os anos, que é o mês do santo da igreja, acontece a festa com  procissão. Milhares de pessoas circulam agitadas pelos arredores. A minha rua, que é a mesma da igreja, é bloqueada para os automóveis e é onde a procissão passa, pela manhã e à noitinha. Os devotos e pagadores de promessas vão cantando com velas nas mãos, sobre as cabeças. A rua até parece um grande manto iluminado, movendo-se lentamente. E as moças solteiras fazem encomendas de graças, e pagam outras alcançadas, acendendo velas de sete dias, ou velas de mais de um metro, no velário.
Na praça, as crianças ainda andam de balanço e gira-gira, enquanto os pais tomam chimarrão e sol nos bancos. Numa esquina tem uma agência de beira de estrada. Ali se faz panfletos, toldos, cartões, faixas e outro escambau. E também muita lambança. Salão de beleza tem uns cinco. Uma farmácia e um açougue, três supermercados e uma padaria, que é uma tentação. Finalzinho da tarde, quem passa para, porque o cheirinho do pão fresco convida para um café. E quando alguém entra não é só um pão que leva. Pega bolo, croissants, pasteizinhos de queijo, tortilhas de limão...
Duas linhas de ônibus e uma lotação fazem o transporte coletivo. Às vezes cheios, às vezes vazios, depende do horário. Início da manhã e final de tarde, sempre lotado. Minha vizinha da frente só anda de lotação. Deve ganhar bem, porque a passagem é cinco e vinte e cinco, subiu. Tem também muitos gatos e cachorros, que latem por qualquer coisa: quando outro cão se aproxima, quando um gato atravessa a rua, ou quando o carteiro passa. Em noite de lua cheia, os gatos namoram nos telhados, soltando gritos esganiçados de fúria e prazer. É uma orgia.
Se eu tivesse podido escolher, com certeza não escolheria esse bairro para morar. Mas cheguei aqui por circunstâncias alheias. E como nem todos moram onde querem, eu também moro onde eu posso. E é aqui que eu posso morar. Sei que não saio daqui tão cedo, por isso aprendi a gostar deste lugar. Comecei apreciar as coisinhas miúdas que me acontecem. Banalidades, acasos, coincidências. Este bairro é o meu presente, que curto e compartilho.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

DONA DE MIM

Saí de casa como quem deixa o cárcere, após um bom tempo de sentença transitada em julgado, cumprida. Peguei a estrada no meu Ford Sedan. Chovia muito. Fui indo nos oitenta por hora, mesmo quando a máxima permitida era cem. Queria aproveitar aquela liberdade soberana que me dominava. Liberdade e solitude, o par perfeito que tanta falta me faz.
Estar sozinha, sem ninguém ao redor, falando, chamando, pedindo, exigindo...passou a ser uma necessidade básica. Essencial para minha mente inquieta e cansada, de noites mal dormidas, carências não providas, exigências permanentes de um bando de entes, precisados e dependentes da minha presença e atenção. Assim mesmo, muitos ‘entes’!
Cheguei no destino às quatorze horas, louca de fome. O Xis do Carmelito, com uma Coca-Cola era meu maior sonho de consumo naquela momento.  Instante longamente desejado. Porém, era véspera de feriado e a lancheria estava fechada. Me bandeei para outro lado, segunda opção: Ilha do Pastel. Sentei numa mesa com poltronas fofas. De mão no cardápio, fui direta ao assunto: - quero um pastel, recheado com iscas de filé e queijo gorgonzola, gratinado, com uma Coca-Cola. O prato logo desceu à mesa. Um pastel gigante, super-recheado, acompanhado de uma montanha de batatas fritas crocantes e salada. Assustei-me, não esperava tanto. Me pus a comer, sorvendo aqueles sabores, teti-a-teti, inclusive fechando os olhos pra sentir mais o gosto. Pensei que não daria conta mas...limpei o prato. Arrematei com a lata de refrigerante.

Depois veio aquele soninho pós digestão. Eu fiquei ali, sentada na poltrona, sozinha, ouvindo algumas vozes, ruídos distantes. Ninguém perto, necessitando comparência. Era a glória, a salvação, quase um estado de graça, sentir-me assim. Única dona de mim. 

sábado, 18 de julho de 2015

SACO CHEIO



Os dias têm sido tão iguais. Ao mesmo tempo tão cheios de pequenas coisas e pessoas miúdas, fuinhas, mesquinhas... picuinhas. Há tantas formas entusiastas de se viver. E ficamos igual ao cão alucinado atrás do rabo. Pega daqui, pega de lá, faz isso, faz aquilo. Ao final, escabelados, nada se concretiza, exceto as lidas banais, invisíveis para os olhos orgulhosos e egoístas dos narcisísticos que nos rodeiam. Dá uma vontade de fugir de casa. Zarpar para qualquer lugar, onde se possa ler e escrever sem barulho, sem o compromisso do almoço, da casa limpa, da roupa lavada. Evadir-se vida afora, sem dependentes e carentes que nos alcancem. Perder-se da vista.
Sinto urgência em tomar uma atitude severa com esta salmodia. Saudade e falta de extravagâncias; de caprichar com minhas singularidades. Esquivar-me destes enquadramentos sociais, morais, que não são legais e ainda engordam. Esvaziar esta arca de bugigangas que, definitivamente, não me pertence: quimeras, expectações, porvir que nunca vem. Planos, estratégias infinitas, esperas com resultados esmorecidos, abortados. Tanto empenho, tanta luta, tanto amor, para efeitos inoperantes, frustrantes.
Estar de saco cheio é meu direito, é consideração comigo mesma.
E para não ouvir dizer que é tudo culpa minha, escapo pelada, sem levar nem deixar nada. Só restará a saudade de mim.