sexta-feira, 29 de abril de 2016

PENSE NISSO 


Como é difícil começar alguma coisa. Não sei se é assim pra todo mundo. Pra mim é. A gente sabe que tem que fazer. A gente quer fazer. Mas alguma coisa nos trava. E vamos adiando a casa pra limpar, a organização do roupeiro, as flores pra replantar, a poeira na biblioteca, o livro pra terminar a leitura, o texto pra escrever... Achamos mil desculpas que nos desviam do caminho da finalidade. E nossos projetos vão esmaecendo. É certo que algumas vontades não dependem apenas da nossa ação mental e física. Como viajar, por exemplo, dependerá das nossas economias, e quando elas vão mal, estagnamos. Um projeto mais ousado, de abrir um negócio, dependerá de inúmeros fatores, que se sobrepõem à simples força volitiva. Começar um regime ou frequentar uma academia, então, quem de vocês já não planejou isso para uma segunda-feira qualquer?  E os que começam na sexta, geralmente não chegam até a segunda. Seguidamente, damos a largada nas intenções. Mas lá pelas tantas, num ponto qualquer do caminho, começamos a fraquejar. Não fazemos num dia, no outro não dá por causa de um isso ou de um aquilo. Depois vem o final de semana, tem que se estar com os filhos, e na semana que segue haverá outras quimeras. E o propósito inicial, já não passa de uma deficiente e malformada concepção, vítima de sucessivos abortos. Uma intenção que ficará para o futuro, pra terminar quando der.
Pior ainda é quando estamos dentro de um projeto maior e se deixa todos os outros desejos pra depois. Como por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical, aprender outras línguas, fazer algum trabalho voluntário. Isso nem depende de questão monetária; hoje em dia tem vídeo-aulas e sites na internet que nos possibilitam todos esses aprendizados. Menos o trabalho voluntário. A caridade roga por nossa presença cara a cara, corpo a corpo. Fora disso não há salvação.
Assim, as postergações funcionam como grilhões enormes e pesados, que nos escravizam a uma zona de conforto. Ficamos inanimados como um cascalho. E o tempo passa do mesmo jeito, sem promessas ou delongas.
Se der comece hoje, se não, pense nisso. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

MEU BAIRRO



No bairro onde moro, crescem gramas entre as calçadas. Já vi até bem-me-quer. As ruas são meio tortas, desniveladas. Mesmo assim, alguns dias atrás a Prefeitura asfaltou a rua principal, que é a minha. Ficou bom, mas os carros agora correm mais. E isso não é bom para as crianças e jovens que gostam de brincar, conversar ou tomar cerveja na beira das calçadas.
Tem a Igreja, e todos os domingos de manhã e terças de tarde, reza-se missas. O pátio da Igreja é amplo, com um bonito jardim e uma escada que vai da rua até a porta do templo. Em junho de todos os anos, que é o mês do santo da igreja, acontece a festa com  procissão. Milhares de pessoas circulam agitadas pelos arredores. A minha rua, que é a mesma da igreja, é bloqueada para os automóveis e é onde a procissão passa, pela manhã e à noitinha. Os devotos e pagadores de promessas vão cantando com velas nas mãos, sobre as cabeças. A rua até parece um grande manto iluminado, movendo-se lentamente. E as moças solteiras fazem encomendas de graças, e pagam outras alcançadas, acendendo velas de sete dias, ou velas de mais de um metro, no velário.
Na praça, as crianças ainda andam de balanço e gira-gira, enquanto os pais tomam chimarrão e sol nos bancos. Numa esquina tem uma agência de beira de estrada. Ali se faz panfletos, toldos, cartões, faixas e outro escambau. E também muita lambança. Salão de beleza tem uns cinco. Uma farmácia e um açougue, três supermercados e uma padaria, que é uma tentação. Finalzinho da tarde, quem passa para, porque o cheirinho do pão fresco convida para um café. E quando alguém entra não é só um pão que leva. Pega bolo, croissants, pasteizinhos de queijo, tortilhas de limão...
Duas linhas de ônibus e uma lotação fazem o transporte coletivo. Às vezes cheios, às vezes vazios, depende do horário. Início da manhã e final de tarde, sempre lotado. Minha vizinha da frente só anda de lotação. Deve ganhar bem, porque a passagem é cinco e vinte e cinco, subiu. Tem também muitos gatos e cachorros, que latem por qualquer coisa: quando outro cão se aproxima, quando um gato atravessa a rua, ou quando o carteiro passa. Em noite de lua cheia, os gatos namoram nos telhados, soltando gritos esganiçados de fúria e prazer. É uma orgia.
Se eu tivesse podido escolher, com certeza não escolheria esse bairro para morar. Mas cheguei aqui por circunstâncias alheias. E como nem todos moram onde querem, eu também moro onde eu posso. E é aqui que eu posso morar. Sei que não saio daqui tão cedo, por isso aprendi a gostar deste lugar. Comecei apreciar as coisinhas miúdas que me acontecem. Banalidades, acasos, coincidências. Este bairro é o meu presente, que curto e compartilho.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

DONA DE MIM

Saí de casa como quem deixa o cárcere, após um bom tempo de sentença transitada em julgado, cumprida. Peguei a estrada no meu Ford Sedan. Chovia muito. Fui indo nos oitenta por hora, mesmo quando a máxima permitida era cem. Queria aproveitar aquela liberdade soberana que me dominava. Liberdade e solitude, o par perfeito que tanta falta me faz.
Estar sozinha, sem ninguém ao redor, falando, chamando, pedindo, exigindo...passou a ser uma necessidade básica. Essencial para minha mente inquieta e cansada, de noites mal dormidas, carências não providas, exigências permanentes de um bando de entes, precisados e dependentes da minha presença e atenção. Assim mesmo, muitos ‘entes’!
Cheguei no destino às quatorze horas, louca de fome. O Xis do Carmelito, com uma Coca-Cola era meu maior sonho de consumo naquela momento.  Instante longamente desejado. Porém, era véspera de feriado e a lancheria estava fechada. Me bandeei para outro lado, segunda opção: Ilha do Pastel. Sentei numa mesa com poltronas fofas. De mão no cardápio, fui direta ao assunto: - quero um pastel, recheado com iscas de filé e queijo gorgonzola, gratinado, com uma Coca-Cola. O prato logo desceu à mesa. Um pastel gigante, super-recheado, acompanhado de uma montanha de batatas fritas crocantes e salada. Assustei-me, não esperava tanto. Me pus a comer, sorvendo aqueles sabores, teti-a-teti, inclusive fechando os olhos pra sentir mais o gosto. Pensei que não daria conta mas...limpei o prato. Arrematei com a lata de refrigerante.

Depois veio aquele soninho pós digestão. Eu fiquei ali, sentada na poltrona, sozinha, ouvindo algumas vozes, ruídos distantes. Ninguém perto, necessitando comparência. Era a glória, a salvação, quase um estado de graça, sentir-me assim. Única dona de mim.