sexta-feira, 6 de maio de 2016

FAZENDO FALTA

Enquanto ajeito minhas gavetas, Joana canta “to fazendo falta”, na Antena 1 ao vivo. Podem até considerar uma música meio jeca, mas eu gosto. E na voz da Joana, ficou esplêndida: ‘Você pode ter um tempo pra pensar e uma eternidade pra se arrepender, tá na cara dá pra ver no seu olhar, tô fazendo muita falta pra você’.
Penso no que ou quem me faz falta. Suponho que eu também devo fazer falta a alguém, ou não. Todos somos insubstituíveis, nas nossas singularidades. Até os nossos defeitos deixam saudade. Em algum instante da nossa trajetória, marcas sólidas vão se desenhando. E vamos escoando vida afora, carregados de ‘ais’. Um familiar que partiu; um amigo que se perdeu, um amor mal resolvido, um bichinho de estimação que fugiu de casa, ou morreu de velho. Quanta falta faz, o abraço estreito e a fala mansa daquela pessoa com quem convivemos um bom tempo e esse mesmo, por contingências adversas, baniu do nosso convívio. Como diz outra letra: ‘você que ontem me sufocou de amor e de felicidade, hoje me sufoca de saudade.’ Ai, ai, ai. Dá um nó na alma, uma dor glacial, uma vontade de suplantar a sorte e viver tudo de novo. Mas sem os mesmos equívocos, certamente.
Acontece também, sem termos consciência, na maioria das vezes, de sentirmos falta de nós mesmos. Extraviamo-nos dentro das nossas escolhas, deixando um cadinho de nós cá, outro lá, e chega um momento que não nos encontramos mais. Nossa identidade resta desagregada. Muitas vezes nem lembramos mais do ponto de partida. É a hora de se concentrar e buscar o fio da meada. Um encontro conosco, trará boas recordações, fará um bem enorme pra qualquer alma inquieta. Faz falta resgatar nosso arquétipo e nos reconstruir mais firmes, pra não ir perdendo biela por esses caminhos ruidosos, e ao final restar em fiapos.
Sinto falta do cheiro da velha casa da minha mãe, que já partiu. E de outros tantos registrados no meu olfato. Me faz falta algumas oportunidades que extraviei, alguns desacertos não ajustados; alguns amores não compreendidos, porque sempre fui meio distraída e não pensei que eram pra mim. Tá fazendo falta alguma paz, algum sossego, que devo ter esquecido num canto qualquer. 
Acho que to sentindo falta de mim. Preciso me buscar. 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

PENSE NISSO 


Como é difícil começar alguma coisa. Não sei se é assim pra todo mundo. Pra mim é. A gente sabe que tem que fazer. A gente quer fazer. Mas alguma coisa nos trava. E vamos adiando a casa pra limpar, a organização do roupeiro, as flores pra replantar, a poeira na biblioteca, o livro pra terminar a leitura, o texto pra escrever... Achamos mil desculpas que nos desviam do caminho da finalidade. E nossos projetos vão esmaecendo. É certo que algumas vontades não dependem apenas da nossa ação mental e física. Como viajar, por exemplo, dependerá das nossas economias, e quando elas vão mal, estagnamos. Um projeto mais ousado, de abrir um negócio, dependerá de inúmeros fatores, que se sobrepõem à simples força volitiva. Começar um regime ou frequentar uma academia, então, quem de vocês já não planejou isso para uma segunda-feira qualquer?  E os que começam na sexta, geralmente não chegam até a segunda. Seguidamente, damos a largada nas intenções. Mas lá pelas tantas, num ponto qualquer do caminho, começamos a fraquejar. Não fazemos num dia, no outro não dá por causa de um isso ou de um aquilo. Depois vem o final de semana, tem que se estar com os filhos, e na semana que segue haverá outras quimeras. E o propósito inicial, já não passa de uma deficiente e malformada concepção, vítima de sucessivos abortos. Uma intenção que ficará para o futuro, pra terminar quando der.
Pior ainda é quando estamos dentro de um projeto maior e se deixa todos os outros desejos pra depois. Como por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical, aprender outras línguas, fazer algum trabalho voluntário. Isso nem depende de questão monetária; hoje em dia tem vídeo-aulas e sites na internet que nos possibilitam todos esses aprendizados. Menos o trabalho voluntário. A caridade roga por nossa presença cara a cara, corpo a corpo. Fora disso não há salvação.
Assim, as postergações funcionam como grilhões enormes e pesados, que nos escravizam a uma zona de conforto. Ficamos inanimados como um cascalho. E o tempo passa do mesmo jeito, sem promessas ou delongas.
Se der comece hoje, se não, pense nisso. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

MEU BAIRRO



No bairro onde moro, crescem gramas entre as calçadas. Já vi até bem-me-quer. As ruas são meio tortas, desniveladas. Mesmo assim, alguns dias atrás a Prefeitura asfaltou a rua principal, que é a minha. Ficou bom, mas os carros agora correm mais. E isso não é bom para as crianças e jovens que gostam de brincar, conversar ou tomar cerveja na beira das calçadas.
Tem a Igreja, e todos os domingos de manhã e terças de tarde, reza-se missas. O pátio da Igreja é amplo, com um bonito jardim e uma escada que vai da rua até a porta do templo. Em junho de todos os anos, que é o mês do santo da igreja, acontece a festa com  procissão. Milhares de pessoas circulam agitadas pelos arredores. A minha rua, que é a mesma da igreja, é bloqueada para os automóveis e é onde a procissão passa, pela manhã e à noitinha. Os devotos e pagadores de promessas vão cantando com velas nas mãos, sobre as cabeças. A rua até parece um grande manto iluminado, movendo-se lentamente. E as moças solteiras fazem encomendas de graças, e pagam outras alcançadas, acendendo velas de sete dias, ou velas de mais de um metro, no velário.
Na praça, as crianças ainda andam de balanço e gira-gira, enquanto os pais tomam chimarrão e sol nos bancos. Numa esquina tem uma agência de beira de estrada. Ali se faz panfletos, toldos, cartões, faixas e outro escambau. E também muita lambança. Salão de beleza tem uns cinco. Uma farmácia e um açougue, três supermercados e uma padaria, que é uma tentação. Finalzinho da tarde, quem passa para, porque o cheirinho do pão fresco convida para um café. E quando alguém entra não é só um pão que leva. Pega bolo, croissants, pasteizinhos de queijo, tortilhas de limão...
Duas linhas de ônibus e uma lotação fazem o transporte coletivo. Às vezes cheios, às vezes vazios, depende do horário. Início da manhã e final de tarde, sempre lotado. Minha vizinha da frente só anda de lotação. Deve ganhar bem, porque a passagem é cinco e vinte e cinco, subiu. Tem também muitos gatos e cachorros, que latem por qualquer coisa: quando outro cão se aproxima, quando um gato atravessa a rua, ou quando o carteiro passa. Em noite de lua cheia, os gatos namoram nos telhados, soltando gritos esganiçados de fúria e prazer. É uma orgia.
Se eu tivesse podido escolher, com certeza não escolheria esse bairro para morar. Mas cheguei aqui por circunstâncias alheias. E como nem todos moram onde querem, eu também moro onde eu posso. E é aqui que eu posso morar. Sei que não saio daqui tão cedo, por isso aprendi a gostar deste lugar. Comecei apreciar as coisinhas miúdas que me acontecem. Banalidades, acasos, coincidências. Este bairro é o meu presente, que curto e compartilho.