sábado, 10 de setembro de 2016

DEVOÇÃO

À vezes alguma palavra fica martelando na minha cabeça. Vem-me toda hora à mente, futrica minha imaginação. Por que acontece? Não sei, deve ser uma questão de neurotransmissores, ou não.
Tais impulsos, seguidamente,  me remetem ao dicionário, em busca de significados. Gosto dos significados, que são aquilo que alguma coisa quer dizer, o sentido.
Hoje acordei me lembrando de ‘devoção’. E ela tomou conta do meu dia.  Segundo os entendidos, devoção é ‘piedade ou sentimento religioso; expressão de adoração a Deus e aos santos através de práticas religiosas: tinha devoção por Santa Rita de Cássia’. Mas também significa afeição; dedicação, amor ou afeto demonstrado em relação a alguma coisa, ou alguém, como por exemplo: a sua devoção ao teatro era sincera. Ou quando se adora ou venera: sua esposa era sua verdadeira adoração.
O mundo moderno, tão pusilânime nas coisas de Deus, não entende mais o significado da palavra devoção. Hoje, na maioria dos casos, as práticas devocionais não passam de sentimentalismo subjetivista que nos mantém aprisionados ao passado. Tudo precisa ser processado, ruminado, oferecido sem que seja preciso sacrifício ou esforço. Sim, porque a devoção reivindica estes dois substantivos. Para conversar com Deus, criar mais intimidade com ele e se aprofundar na fé através da palavra ou da oração, é preciso dedicação. Como diz uma música do Gil: se eu quiser falar com Deus, tenho que aceitar a dor, tenho que comer o pão que o diabo amassou, tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão...
Abnegação é tarefa difícil. E, da mesma forma que a devoção a Deus exige empenho e zelo, também é preciso devotamento e cuidado nos relacionamentos interpessoais, para que vinguem e se mantenham.
Quem tem devoção pratica o afeto e o amor. E praticar o afeto e amor, com renúncia e desambição, não é empreitada fácil. É predicado só dos espíritos altruísticos.

Um compromisso submisso, rebuliço no cortiço, chame o Padre "Ciço" para me benzer, oh, com devoção.”

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AMORAS NA JANELA

No jardim da minha vizinha tem um pé de amoras. Mas apenas as raízes e o tronco são da vizinha. Os galhos, as folhas, flores e frutos, penderam todos para o meu lado.  Quando estudei Direito, especificamente na disciplina das obrigações, lembro-me de um artigo do código civil que diz que “os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram...”. Então, conforme dispõe a lei, as amoras da vizinha são minhas!
 Mas isso não tem a menor importância para mim, nem para a vizinha. O que importa mesmo é a beleza que se forma na minha janela, principalmente nesta época do ano, entrada da primavera. As folhas rechearam a copa; os frutos ainda estão verdes, mas carregam os galhos e logo estarão amadurecendo. E os sabiás e bem-te-vis alvoroçados, pulam de cá para lá, cada qual tentando criar uma melodia maioral para encantar as fêmeas e conseguir iminente acasalamento.
Os ramos estão quase entrando na minha sala, mas não vou arrancar uma folha sequer. Quero acompanhar este espetáculo da natureza bem de pertinho. Lembro-me dos primeiros brotinhos que surgiram há um mês. Cada manhã, a amoreira ficava um pouco mais verde e agora é um mar de folhas.  E minha casa se irradia de cheiro verde e vigor.  Quando tem sol, a sombra da amoreira se desenha no meu chão. E eu caminho sobre esta obra de arte.
Quando os frutos maturarem, terei amoras vermelhas ao alcance da minha mão. De manhã, ao levantar, vou abrir a janela e compartilhar com os pássaros um saboroso café com amoras.  Será uma festa só. 

sábado, 20 de agosto de 2016

IDADE DO LIMBO

Etimologicamente, limbo tem origem no latim limbus, cujo significado é beira, orla, borda ou margem. Com base na origem da palavra, o significado figurado de limbo revolve sobre o estado daquilo que é negligenciado, esquecido, ou seja, está no limbo. No Catolicismo, o limbo é conhecido como o destino daqueles que não receberam o sacramento do batismo. Informalmente, usa-se o termo limbo no cotidiano para dizer-se do lugar onde coisas sem importância são esquecidas ou onde guardamos aquilo que julgamos sem utilidade ou função ativa.
Pois bem, eu descobri que estou na idade do limbo. A idade entre os cinquenta e sessenta anos, é um tempo onde não somos mais nem uma coisa nem outra. Passamos da idade balzaquiana, da idade da loba e viramos cinquentonas. Nem um termo específico tem essa idade. Estamos na fase do climatério que precede o término da vida reprodutiva da mulher, marcado por alterações somáticas e psíquicas e que se encerra na menopausa. Algumas mulheres chegam aos cinquenta com essa fase superada, outras não. Mesmo já estando aposentadas da nossa atividade profissional, não podemos usufruir alguns direitos das sessentonas, como passagem de ônibus gratuita, meio ingresso em shows, teatro e cinema, prioridade nas filas, etc. Eu digo que este período corresponde à  uma adolescência da terceira idade. Uma fase metamórfica. Antigamente, se falava na ‘idade crítica’, referindo-se à idade do climatério. Concordo em grau, gênero e número com este termo. Nada mais crítico do que sentir-se entrando na terceira idade, com todos os sintomas e crises possíveis, com deficiência de colágeno, queratina, cálcio, vitamina D, tendo que tratar tudo isso, fazer reposição hormonal, mas sem os direitos e benesses que ainda estão por vir. Para mim, esse sentimento é aquele que vivenciamos quando não encontramos o nosso lugar. É quando não nos encontramos em canto algum. Momento de transformação. Mudanças que trazem muitos desconfortos, breves para algumas, prolongados para outras.
Grosso modo, "ficar no limbo" significa morrer sem poder entrar no céu nem ingressar no inferno. Cinquentonas, bem-vindas ao umbral, sem perder a  esperança de alcançar o éden, no menor tempo e sofrença possíveis.