sábado, 1 de outubro de 2016

ZONA CENTRAL

Ontem fui ao centro da nossa capital. Costumo postergar minhas idas, acumulando compromissos e tarefas que sou obrigada a fazer naquela região. Assim quando vou faço tudo de uma vez só, que é pra não ter que voltar tão cedo.
Mas desta vez fui com mais tempo e calma. O suficiente para observar e sentir tudo o que se passava ao meu redor e, choquei! O nosso centro está feio e sujo, mal cuidado, cheio de ambulantes de todo tipo, vendendo de tudo em qualquer lugar. Tá virado numa zona, no sentido mais pejorativo da palavra. Parece não haver mais regularização nem restrição. Até feirinha de frutas e verduras tem no chão de várias esquinas. E pra completar o caos, como estamos em véspera de eleições, a cada metro quadrado um cabo eleitoral oferecendo panfletos, santinhos, colinhas e bandeirolas. Gritaria, ruído, zoeira! Pontos de ônibus sempre lotados, na hora do pico as filas se arrastam calçada afora. Vê-se rostos cansados, peles suadas, olhos perdidos, expressões indignadas. Porto Alegre não é mais ‘Horizontes’ como cantava Kleiton e Kledir nos anos 80: ‘Há muito tempo que ando nas ruas de um porto não muito alegre e que, no entanto, me traz encantos e um pôr-do-sol me traduz em versos, de seguir livre muitos caminhos, arando terras, provando vinhos; de ter ideias de liberdade e ver amor em todas as idades’.
Há vinte e poucos anos quando me mudei do interior pra capital, sentia e respirava a beleza dessa Porto Alegre cantada em versos. Agora sinto minha querida Porto cinza e mal cuidada. A violência desenfreada, é um câncer que deixa o povo desassossegado. No centro a ordem é apertar a bolsa entre os braços, andar ligeiro e atento, ou de preferência não carregar bolsa nenhuma.
Nas imediações do Mercado Público e na Voluntários, final de tarde é uma balbúrdia. Todos apressados, correndo, se esbarrando. Uma neurastenia coletiva.
Respiro e procuro a beleza dentro deste rebuliço. Há muito pra se admirar; a graciosidade é perene e o encantamento se esconde por trás da desarrumação. Quem sabe os novos gestores eleitos possam exumar a Porto Alegre extraviada e trazer de volta a cidade que tem um jeito legal. A cidade que ‘me faz tão sentimental’. E poderei, então, cantar sem receio: ‘Não diga a ninguém, Porto Alegre me tem; não leve a mal, a saudade é demais; é aqui que eu vivo em paz’.

sábado, 10 de setembro de 2016

DEVOÇÃO

À vezes alguma palavra fica martelando na minha cabeça. Vem-me toda hora à mente, futrica minha imaginação. Por que acontece? Não sei, deve ser uma questão de neurotransmissores, ou não.
Tais impulsos, seguidamente,  me remetem ao dicionário, em busca de significados. Gosto dos significados, que são aquilo que alguma coisa quer dizer, o sentido.
Hoje acordei me lembrando de ‘devoção’. E ela tomou conta do meu dia.  Segundo os entendidos, devoção é ‘piedade ou sentimento religioso; expressão de adoração a Deus e aos santos através de práticas religiosas: tinha devoção por Santa Rita de Cássia’. Mas também significa afeição; dedicação, amor ou afeto demonstrado em relação a alguma coisa, ou alguém, como por exemplo: a sua devoção ao teatro era sincera. Ou quando se adora ou venera: sua esposa era sua verdadeira adoração.
O mundo moderno, tão pusilânime nas coisas de Deus, não entende mais o significado da palavra devoção. Hoje, na maioria dos casos, as práticas devocionais não passam de sentimentalismo subjetivista que nos mantém aprisionados ao passado. Tudo precisa ser processado, ruminado, oferecido sem que seja preciso sacrifício ou esforço. Sim, porque a devoção reivindica estes dois substantivos. Para conversar com Deus, criar mais intimidade com ele e se aprofundar na fé através da palavra ou da oração, é preciso dedicação. Como diz uma música do Gil: se eu quiser falar com Deus, tenho que aceitar a dor, tenho que comer o pão que o diabo amassou, tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão...
Abnegação é tarefa difícil. E, da mesma forma que a devoção a Deus exige empenho e zelo, também é preciso devotamento e cuidado nos relacionamentos interpessoais, para que vinguem e se mantenham.
Quem tem devoção pratica o afeto e o amor. E praticar o afeto e amor, com renúncia e desambição, não é empreitada fácil. É predicado só dos espíritos altruísticos.

Um compromisso submisso, rebuliço no cortiço, chame o Padre "Ciço" para me benzer, oh, com devoção.”

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AMORAS NA JANELA

No jardim da minha vizinha tem um pé de amoras. Mas apenas as raízes e o tronco são da vizinha. Os galhos, as folhas, flores e frutos, penderam todos para o meu lado.  Quando estudei Direito, especificamente na disciplina das obrigações, lembro-me de um artigo do código civil que diz que “os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram...”. Então, conforme dispõe a lei, as amoras da vizinha são minhas!
 Mas isso não tem a menor importância para mim, nem para a vizinha. O que importa mesmo é a beleza que se forma na minha janela, principalmente nesta época do ano, entrada da primavera. As folhas rechearam a copa; os frutos ainda estão verdes, mas carregam os galhos e logo estarão amadurecendo. E os sabiás e bem-te-vis alvoroçados, pulam de cá para lá, cada qual tentando criar uma melodia maioral para encantar as fêmeas e conseguir iminente acasalamento.
Os ramos estão quase entrando na minha sala, mas não vou arrancar uma folha sequer. Quero acompanhar este espetáculo da natureza bem de pertinho. Lembro-me dos primeiros brotinhos que surgiram há um mês. Cada manhã, a amoreira ficava um pouco mais verde e agora é um mar de folhas.  E minha casa se irradia de cheiro verde e vigor.  Quando tem sol, a sombra da amoreira se desenha no meu chão. E eu caminho sobre esta obra de arte.
Quando os frutos maturarem, terei amoras vermelhas ao alcance da minha mão. De manhã, ao levantar, vou abrir a janela e compartilhar com os pássaros um saboroso café com amoras.  Será uma festa só.