sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

QUE VENHAM OS ANOS

Hoje senti, literalmente, que estou ingressando na terceira idade, ou maturidade, ou  melhor idade, que não me parece ser verdade. Como ouvi de uma senhora esses dias, esta é a melhor idade para os farmacêuticos, médicos, fisioterapeutas... Enfim, estou envelhecendo.
Na recepção de um consultório médico, bancos todos ocupados, eu de pé encostada à parede. Uma jovem, com não mais de 20 anos, me olhou muito gentil e sorrindo fez o gesto e pergunta derradeira: a senhora quer sentar?
Fiquei constrangida, encabulada, pronta pra dizer não, mas não quis ser indelicada e aceitei a oferta agradecida e resignada.
E ali fiquei no banco, refletindo sobre o fato. Se estão me dando preferência em assentos é porque meus traços acusam minha idade ou até mais. Até pouco tempo esta era uma ação em que o sujeito ativo era sempre eu.  Agora acabava de me transformar no sujeito passivo. O fato levantou-me dúvidas: será que eu não notei que os anos passaram tão rápido assim? Será que todos me veem como uma senhora que deve ter direito aos acentos preferenciais? Abateu-me uma espécie de crise etária. Ainda me sinto jovem, disposta, minha cabeça e disposição não passam dos quarenta. Nos magazines de roupas femininas nunca me dirijo aos departamentos com roupas para senhoras. Prefiro aqueles de roupas mais despojadas, que diminuem a minha aparência de cinquenta. Sinto-me na idade da loba, mas com o fato que acabara de ocorrer senti  que estou mais pra tartaruga marinha.
Confesso que saí do consultório com a autoestima abalada. E pra levantar o moral, fui pra um café, pedi um cappuccino com chocolate de avelã. Já que a idade me dá o aval, me sinto liberada para certos prazeres, mesmo que engordem. E o rapaz que me trouxe o café diz: a moça quer açúcar ou adoçante? Sorri – adoçante, por favor.
Entre as sentenças ‘a senhora quer sentar’ e ‘a moça quer açúcar ou adoçante’, senti certa equidade. Fez-me julgar que estou bem. Tomei o último gole de café e comi com gosto o chocolate de avelã com sabor de quero mais. E que venham os anos, de preferência com mais sabores que dissabores. 

sábado, 26 de novembro de 2016

NO ANO QUE VEM



No ano que vem eu vou, terei, farei, haverá. Quando eu conseguir, tiver, fizer. Quando eu me aposentar...
Esta é a frase mais pronunciada nesta época. Tudo o que não iniciamos, continuamos ou terminamos no presente, transferimos para um tempo posterior ao que se fala. Falamos como se o ano que vem fizesse parte de um futuro longínquo e mágico. Tão distante que haverá tempo para realizar projetos e sonhos deixados pelo caminho, em meio a horas desperdiçadas. Hoje é o futuro de ontem e passado de amanhã. Então o futuro é tempo que já era ou nunca será. Quem saberá? O que temos certeza é que hoje é o nosso melhor presente. É este momento que estou escrevendo, está calor e o céu escuro parece trazer chuva. Agora são dezenove horas e vinte oito minutos e acaba de cair a conexão da minha internet. Meu vizinho está chegando do trabalho, ouço o barulho da chave na fechadura da sua porta. Estou com sede. Enquanto pego a água espio meu gato deitado no sofá da sala, de olho numa lagartixa na parede, próxima da janela. Coisa graciosa a figura de um bichano circulando pela casa, roçando-se nas nossas pernas, com miados próprios pra cada situação que só nós, seus donos, compreendemos. Volto a escrever e a chuva começa cair.
Agora é o momento que tu estás lendo este texto. Já pensou que se deixasse para outro dia, talvez nunca mais lesse?
 Muito pior do que conjugar os verbos no futuro do presente é pronunciá-los no futuro do pretérito ou do passado: eu deveria, queria, poderia; se eu tivesse, se eu pudesse... Existem pessoas que passam a vida planejando o futuro para o ano que vem. E morrem querendo ter feito, ter ido, ter tido e ainda culpando os outros por tudo o que deixaram de executar, justificando fracassos, erros, acomodação.
O “ano que vem” é daqui alguns dias. Como saber se estaremos aqui? Depois do jantar vou escrever a primeira página do livro que estou planejando começar desde o ano passado.




sexta-feira, 11 de novembro de 2016

TEMPOS DE PRIMAVERA

Da minha janela do quinto andar, observo o espetáculo da reprodução das aves e plantas. Ainda ontem estava tudo tão cinza. Folhas caídas, galhos secos, pássaros encolhidos. Chuva e neve, água e ventania. De repente tudo se refaz como se fosse um milagre – e é!  A brotação aparece de uma hora para outra.  A passarada corta o ar em reboliço. Voam de cá pra lá, fazem ninhos nos lugares mais imprevisíveis. É preciso reproduzir! Os ventos fazem sua parte, sopram, assobiam, transportam. Uma pressa de vida se derrama no ar.
A palavra ‘primavera’ tem origem do latim ‘primo vere’, que significa ‘começo do verão’.  Muitas primaveras se passaram desde que emplaquei por aqui – casualmente no mês de setembro. Algumas foram de cantos e muitas flores, outras nem tanto. Acho que é assim para todo mundo. Primavera, verão, outono, inverno... O importante é que toda estação vai e volta. Entre uma temporada e outra os amores e dissabores nascem, morrem, reciclam-se. Além de ser a estação onde a natureza floresce ao nosso redor, a primavera também é o período em que nossas almas ficam mais coloridas, cheias de ânimo e novas energias. 
O escritor Jeocaz Lee-Meddi, brasileiro nascido em Goiás, que escreve sobre o nosso tempo e sobre o passado histórico, tem um pensamento que diz assim: “Não prometas nada que vá além da próxima primavera. Nenhuma fidelidade resiste à insatisfação humana, se assim o fosse, Adão estaria até hoje no Éden, fiel às promessas de Deus”.  Desde que li isto, programo minha vida entre uma primavera e outra. O que durar mais, é lucro!  Parece-me que a natureza toda se projeta desta mesma forma, no interstício das estações.
Também voltei a ouvir o sabiá nas madrugadas, entoando suas notas em vários volumes, escalas e variações, na copa do Flamboyant. Dizem que um sabiá não canta igual ao outro. Eu acho que é verdade. Cada sabiá tem sempre uma variaçãozinha, uma notinha diferente, um novo piado que avisa: - desse jeito só eu canto!  
Só não tenho como saber se é o mesmo sabiá da primavera passada.