sábado, 10 de novembro de 2018


TOMANDO POSSE


Num surto de ânimo e vontade,  há tempos ausentes em mim, nesta semana remexi tudo na minha casa. Arrumei o roupeiro, guardando as roupas de inverno nas prateleiras e gavetas mais altas, deixando as de primavera e verão à frente, limpas e bem dobradas.  Desfiz-me daquelas que não uso mais, tirei o pó de tudo, borrifei com água perfumada de flor de laranjeira. Depois separei alguns calçados de saltos, que não posso mais usar por causa da lesão crônica no tornozelo, fotografei e anunciei para vender num site de desapego. Vasculhei tudo no quarto do meu filho, hoje desocupado, encontrei cupins no baú de guardar roupas sujas. Removi-o para fora. Com a vassoura retirei algumas teias de aranha nos cantos do teto, arredei móveis, varri e lavei tudo.
No outro dia fiz o mesmo nas outras peças, banheiro, cozinha, sala, área de serviço... Limpei, limpei e limpei, com vontade e carinho! As plantas que estavam empoeiradas lavei folha por folha, troquei a terra, mudei de lugar, e elas reavivaram.
Durante esta faxina de interação, fui percebendo o quanto eu havia deixado de lado a minha casa, meu lar, minhas ‘coisas’. Há muito eu não fazia isso, pagava para alguém fazer de vez em quando, não dava importância se alguma coisa estragava, se as flores estavam secas por falta de água, se o teclado se enchia de pó por falta de uso, se as roupas estavam amassadas por descuido e desleixo. Confesso que estive assim por alguns anos, meio ‘ausente’ da casa, da vida, de mim. Parece que de repente acordei! E nesta epidemia de ânimo que me toma agora, adotei a Maju, uma gatinha preta e mimosa, para preencher o vazio de animais na casa, que durou três anos, desde que minha gata Maia nos deixou. Até a vontade de ter e cuidar de um bicho tinha-me abandonado.
Incrível como é importante a gente cuidar do que a gente tem, seja lá o que for, casa, móveis, roupas, flores, bichos, companheiro(a)s, trabalho, ninharias ou não, são o que temos. Hoje me sinto novamente mais intensa e plena, retomando a posse do meu lar e da minha consciência, perdidas por negligência e desídia. Não posso me culpar, porque andei um tanto desorientada, consequência de sucessivos fatos e notáveis abalos que não vale a pena aludir. O importante é que me recobrei e estou disposta e alerta de novo para cuidar e amar o que me pertence. São as conquistas que a vida me permitiu até aqui, não posso ab-rogar por descaso e indolência.
Acredito que assim como eu, você também já deve ter passado por fases sinuosas aonde se vai abandonando tarefas e responsabilidades, o abatimento vai nos consumindo como se fosse uma planta parasita definhando a planta anfitriã. Ainda bem que o tempo, a vontade, o esforço e a fé, são recursos que nos acorrem, nos chamando de volta à posse de nossas vidas.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018




CHOVE LÁ FORA

O inverno continua insistindo na sua presença fria, inexorável, pertinaz. Da minha vidraça observo as calçadas molhadas, poças na rua, o chuvisqueiro cortando o ar. A amoreira, com os poucos dias de sol e temperatura um pouco mais alta da semana passada, se encheu de brotos, folhas e pequenas frutinhas. Apressada, roga pela primavera. Eu, assim como a amoreira, me sinto pronta para rebentar minha natureza, reprimida pelas circunstâncias da vida. Tantos planos por germinar, expectativas malogradas, saudades contidas, rascunhos desperdiçados, versos não construídos. Quero gritar ou correr, não consigo. A chuva atrapalha as corridas, os gritos perdem-se na solidão da casa. E tudo fica no zero a zero, mas eu quero um a um. As vontades e lembranças são de amor e calor, mas a realidade me remete ao frio aqui do sul.
Bem dizem os especialistas e as pesquisas, que o clima pode alterar funcionalmente os estados emocionais humanos. Há uma estreita relação entre o humor e o tempo, sem dúvida. O verão é de humor elevado, o inverno reflete a introspecção. Deve ser porque a luz do sol estimula a produção de serotonina, dopamina e melatonina. É a química do cérebro ditando as regras do nosso bem estar. Mas não é só isso, além das reações químicas positivas que a presença do sol traz para o organismo, também existem benefícios psicológicos. Nos meses e estações onde os dias são mais quentes, iluminados e longos, existe algo no ar que nos convida a sair e interagir. No entanto, em dias em que o tempo está fechado e as temperaturas mais baixas, acontece o contrário, o convite para hibernar e refletir. É uma oportunidade de reciclagem interna. É o que estou tentando fazer nesses últimos dias de chuva, frio e quarentena: remastigando emoções, cogitando possibilidades, requalificando dados. Preparando-me para ‘soltar esta louca e arder de paixão’. 

sexta-feira, 27 de julho de 2018


BARULHOS

Os sons da rua são muitos: do motor e buzina dos carros e motocicletas, cães latindo, gatos miando, pedreiros trabalhando nas obras, a máquina de lavar roupas, o casal que mora na quitinete aos fundos e discute a relação todos os dias, parece difícil o consenso. Ainda tem o autofalante do caminhão que vende frutas, do outro que vende produtos de limpeza e aquele do gás.
A palavra ruído, que é sinônimo de barulho, vem do latim rugitus (=rugido), que significa qualquer som indistinto, rumor, barulho, estrondo, estrépito. É tudo aquilo que dificulta a comunicação e perturba a recepção ou compreensão da mensagem. Traduz uma interferência dolorosa entre o mundo e o eu, uma distorção da comunicação em razão da qual as significações se perdem e são substituídas por uma informação parasita que provoca desagrado ou aborrecimento. Assim sendo, na teoria da comunicação ruído pode ser o barulho que impede o destinatário de ouvir o que se fala pelo telefone, mas pode ser também o uso de palavras pouco usuais ou desconhecidas. E no meio desta barulhada toda, ainda tem o som da TV do vizinho de cima, do rádio do vizinho de baixo, da geladeira ligada na cozinha, do liquidificador, da batedeira, das torneiras da pia, da descarga do banheiro, de passos na calçada...
Quando se mora longe dos centros urbanos, estes ruídos diminuem. Lá no meio do mato de onde eu vim, o silêncio era tanto que me angustiava, sentia muita falta de algum movimento. Assim como hoje, muitas pessoas até se sentem mal em um ambiente muito silencioso, dizendo que o silêncio assusta, eu pude vivenciar esta experiência no início dos meus anos. Naquele tempo os ruídos locais eram os pássaros cantando, a água correndo na fonte, a chuva caindo, o vento soprando e balançando as árvores. Os ruídos humanos eram muito escassos. Ouvia-se o ruído de motor de carro muito poucas vezes e ainda assim a uma longa distância.
Hoje luto contra os barulhos que me rodeiam, atrapalhando minha concentração, ceifando meu sono e dispersando meus pensamentos. Somam-se ao escarcéu, os sons perturbadores do nosso interior, oriundos das preocupações da vida adulta, das incertezas, indecisões, questionamentos... Ah, esse barulho atormenta demais! Rouba-nos a paz e a quietude. Põe nossos nervos à prova. Aperta o coração e espreme a cabeça.
E assim segue a vida da gente. Neste driblo constante dos ecos da modernidade, passamos os dias e as noites levando goleadas.
Nunca mais experimentei o silêncio pleno que tive na minha infância. Embora tente exercitar-me na busca da quietude, confesso que é tarefa difícil. O ‘som nosso de cada dia’ impede o apaziguamento e a interioridade. Meu propósito é não desistir dessa busca e ainda almejo reencontrar ‘o silêncio que assusta’!