terça-feira, 28 de março de 2023

 

TERAPIA DE SALÃO

 Cheguei às 14h para ser atendida às 14h30. Marisa escovava o cabelo de uma cliente, enquanto Karine fazia a unha de outra. Sentei, e como não tinha revista para ler e eu não levara nenhum livro, fiquei ‘furungando’ no celular e ouvindo as conversas que rolavam no salão.

A cliente falava dos procedimentos estéticos que havia feito nas áreas íntimas, como depilação a laser e colocação de ácido hialurônico na ‘piriquita’. Fiquei atenta, nunca tinha ouvido falar sobre aplicação de tal produto nessa área. A conversa se desenrolava, a cabeleireira contava da colocação de ‘fios’ nas laterais das faces, mas que não resolveu muito para levantar as bochechas e tirar a ‘cara de buldogue’ e o ‘bigode chinês’. Karine levantou-se para ir ao banheiro, parou diante do espelho e se olhou, levantou um pouco a blusa e bateu a palma da mão na barriga: ‘ficou ótimo, pensei que ficaria algum sinal da lipo, mas ficou tudo lisinho’. Entendi que havia feito lipoaspiração abdominal, e o abdômen dela estava mesmo bem definido e bonito. Depois ouvi algo sobre uma cara que encontrou alguém num aplicativo de relacionamento e o fulano se fez passar por um cidadão cheio de boas intenções, contudo, depois de algum tempo, ou melhor, de muito tempo e alertas das amigas, a mulher começou a perceber que ele só estava interessado na grana dela. Nisso a cliente se manifesta: ‘ah, nessas eu não caio, já me pegaram uma vez, mas a segunda não’. A manicure começou a contar sobre o ex, que só queria saber de andar de jet-ski, não pagava a pensão com pontualidade, mas era um bom pai para a filha; que ele tentou várias vezes retomar a relação, mas ela não quis de jeito nenhum, estava ‘enrolada’ com outro cara. Nisso Marisa intervém: ‘mas que tu gostava de trepar com o ex, é fato né?’. ‘Sim’, responde Karine, ‘mas são águas passadas, agora quero alguém que me preencha em tudo, inclusive me sustente, porque o dinheiro que eu ganho é só pra cuidar de mim’. A cliente dispara: ‘tu tá certíssima, homem tem que bancar a mulher mesmo, essa história de dividir contas e contar moedas é fria’.

Eu, calada, não ousei opinar, muito menos falar alguma coisa da minha vida pessoal, pelo menos naquele momento. Porém, me chamou atenção o fato dessa troca de experiências da mulherada, quando se reúnem num salão de beleza. Interagem, desabafam, riem e às vezes até choram.

Chegou minha vez de ser atendida. Marisa puxou a cadeira (divã) para eu sentar e perguntou sorrindo: ‘e tu, mulher, como está’. Resumi minha resposta em poucas palavras: ‘com dor na lombar’. ‘Ihhh, deve ser puro estresse emocional.’. ‘Talvez’. ‘E teu marido?’ ‘Vai bem’...

domingo, 9 de janeiro de 2022

 

O MUNDO DE MAIKON

Todas as manhãs caminho na pista de 200m que tem numa praça perto da minha casa. Tem muitas árvores e uma passarada permanente que sobrevoa de um galho para outro, fazendo ninhos, cantando, criando filhotes. É um alvoroço!

Eu faço vinte voltas, o que resulta em quatro quilômetros. É nesse momento do meu dia que entra o Maikon. Ele é um rapaz com problemas, não sei que tipo de retardo ele tem, nem qual o CID, mas o comportamento dele é incrível. Ele incorpora personagens e vive intensamente no mundo que ele imita. Muitas vezes ele está na praça caminhando também. Quando me vê dá bom dia e começa me acompanhar na caminhada. Incorpora o instrutor da academia que tem próximo dali, onde ele costuma ficar quase o dia todo. Caminhando ao meu lado ele vai corrigindo minha postura, lembrando que tenho que caminhar reta e coloca o dedo no meu abdômen dizendo: ‘postura, postura’. Eu me corrigo e sigo. Ele continua no papel de meu treinador: ‘respira, respira, abdômen contraído’. Pergunto sobre a namorada dele. Ele diz que ela está na academia. Daí comenta que de tarde é instrutor numa academia lá na Protásio Alves, e que vai de bicicleta até lá. Então ele para de caminhar, mas continua ‘me instruindo’. Encostado na barra de ferro onde a gente se alonga, ele permanece com a postura idêntica do treinador da academia. Quando eu termino a caminhada e vou para os abdominais ele continua me corrigindo. De punho fechado, bem como se faz depois da pandemia, ele dá tchau e sai rumo à academia. Noutros dias já vi Maikon com uma roda de direção de veículo que alguém deve ter conseguido para ele, e também um crachá da companhia de ônibus que circula no bairro. Ele diz que é ‘motorista da Carris’. Então desempenha intensamente este outro papel.

Confesso que às vezes sinto inveja do Maikon. Vontade de viver outro personagem, que não fosse eu mesma. Viver, por alguns instantes do dia, a vida de outro, de preferência alguém que admiramos, deve ser uma experiência incrível. Sair da nossa realidade em momentos oportunos, eu acredito que pode nos fazer um bem enorme.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

 

SÓ HOJE

 Hoje fez um lindo dia de sol. O ano está quase no final e a pandemia está sob controle, ao menos aqui no Brasil. Já passamos pelo outubro rosa, indo para o final do novembro azul. A vida passa rápida, enquanto nos jardins e quintais, as flores e plantas têm seu tempo certo de plantio, germinação, colher e florescer. Dentro de mim, o coração bate normalmente, mesmo assim consultei um cardiologista, que ouviu meus sinais e disse que eu não tenho sopro no coração, mas pediu exame ergométrico, entre outros. Talvez clinicamente meu coração esteja são, mas emocionalmente está abalado. Uma saudade bandida me aperta o peito, lembrança de alguém que foi muito importante na minha vida; saudade do que deixei de viver, saudade da época da juventude, tempo em que tudo é muito fácil e se resolve rapidamente na emoção.

Hoje, só hoje, eu queria ter aquele alguém que me abraçasse forte e dissesse: vai ficar tudo bem, eu estou aqui, confie em mim! Estou tão precisada e carente disso. Tem uma música do Djavan que diz mais ou menos assim: ‘sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar’. Sinto-me assim, hoje, tendo que ter e não ter para dar. E também precisando de alguém que também não tem para me dar. Poderia ser tudo tão mais fácil, mais leve e alegre. Contudo, as picuinhas da vida, vão nos arrastando para um vale de lágrimas, e tudo o que era para ser azul claro, acaba num grande borrão.

Hoje, ‘eu preciso te abraçar, sentir teu cheiro de roupa limpa, pra esquecer os meus anseios e dormir em paz’. Essa música cantada pelo Jota Quest, me define. Preciso da segurança que tu me passava, a certeza de que por trás daquele teu olhar intenso, da gravata vermelha combinando com o terno azul escuro, e do cheiro de Poisson, estava toda a fortaleza que eu preciso para repousar e sossegar meu coração.

Hoje, a incerteza, a insegurança, a instabilidade, estão norteando meus dias e eu sinto uma angústia sem fim. Vai passar, eu sei, mas enquanto não passa, o nó na garganta, o aperto no peito, o pânico, me sobressaltam. Se o tempo não tivesse te roubado da minha vida há tantos anos, se tivéssemos tido a oportunidade de encarnar num tempo único para nós dois, poderíamos ter vivido nosso grande amor. Mas poucas coisas são justas e perfeitas, talvez depois de hoje, outro dia será possível.