sexta-feira, 11 de setembro de 2020

 

COMPLETUDE

Particularidade, característica ou condição daquilo que é ou se apresenta de modo completo; perfeito. Isso é completude! Tal definição deve nos fazer lembrar do nosso estado de espírito, do nosso interior e também das circunstâncias. Como nos sentimos hoje? Em relação à vida profissional, amorosa, espiritual...

Eu não hesito em dizer que não me sinto completa. E acredito que boa parte da humanidade também não. Isso parece variar conforme o tempo. Há fases da vida da gente que a completude se apresenta plena (não sei se não estou falando uma cacofonia). O que quero dizer é que a gente passa por várias etapas, e tem períodos que estamos bem, felizes por quase nada. Enquanto em outras fases parece que o chão se abre sobre nossos pés e mergulhamos num buraco negro, num beco sem saída, num poço sem fundo, num caos!

Nos últimos anos tenho passado por momentos que eu mesma tenho dificuldade para definir. Todos meus atos necessitam de um esforço quase sobre humano da minha parte: levantar, começar o dia, ir ao mercado, à feira, ao trabalho que é o mais difícil. A vida social que antes já era escassa, agora zerou total. E eu me sinto mergulhada num grande precipício, pendurada por uma corda elástica, às vezes estou lá embaixo, às vezes a elasticidade me puxa para cima. Não caio, mas também não saio!

Em outros tempos só de ver a amoreira cheia de folhas e frutos na minha janela e os sabiás cantando com a chegada da primavera, já me enchia de uma alegria até boba. Hoje o sentimento é outro, quase neutro. Coloco toda esta apatia na conta da menopausa, que tem me trazido tormentos nunca imaginados.

Não sei se isso acontece com vocês também, meus queridos leitores. Podem abrir seus corações comigo, afinal estamos vivendo um tempo em que abraçar não dá, beijar nem pensar, tudo é feito com distanciamento. Falar sobre nossos sentimentos pode ser uma boa saída terapêutica para nossa angústia e solidão.

Talvez eu esteja discutindo sobre coisas que você não sente, mas um outro se reconhece como eu. Porque não é possível que esta sensação de incompletude só acontece comigo?

O que posso dizer é que tenho me empenhado muito para obter o mínimo de completude nesses dias. Escrever ajuda muito, porém, como dizia um amigo, eu me saboto e não escrevo. Serei teimosa e pessimista com a vida?

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

 

SÓ UMA SAIDINHA

Numa casa pequena e pintada de verde, a quarta depois da minha, no outro lado da rua, reside Dona Helena. Ela mora só e em seu jardim tem muitas árvores, flores e um belo gramado. Ela tem oitenta e poucos anos e adora passear de ônibus. Também gosta de conversar com a vizinhança, tomar café e fumar um cigarrinho.

Desde que iniciou a pandemia eu a percebo saindo, meio que cismada, beirando muros, rumo ao mercado da esquina, e mais, sem máscara! Quando a gente cumprimenta, ela responde com um sorriso nos olhos, e já vai justificando que precisa comprar umas coisinhas no mercado; que acabou esquecendo da máscara, mas é rapidinho, só uma saidinha de cinco minutos.

Ela é uma criatura encantadora, nunca a vi se lastimar de nada. Na época que ainda se podia abraçar e beijar, sempre que me via, dispendia o seu melhor abraço e perguntava: - e o filho, como vai? Ela não teve filhos.

Também devido à pandemia, o cartão de passageira, que lhe dá o direito de andar de ônibus gratuitamente, foi bloqueado, tendo em vista um decreto municipal para evitar que muitos idosos andem de ônibus em horários de pico e acabem se contaminando. Nesses dias então, dona Helena tem estado inquieta, anda pela rua de um lado para o outro, ou então para no seu portão atacando os transeuntes puxando uma prosa.

Hoje, saí para caminhar, e como é de costume, lá estava Dona Helena, andando rua afora, sem máscara, descumprindo as ordens sociais, fumando seu cigarrinho, dissimulada e feliz, ostentando sua maturidade, plena de uma saúde invejável. Não tive coragem de chamar sua atenção, ao contrário, adiantei-me e eu mesma dei a justificativa: - só uma saidinha, né Dona Helena?

 

segunda-feira, 27 de julho de 2020


VIDA QUE SEGUE

Estamos no final de julho. O inverno insiste com sua presença distinta, principalmente aqui no Sul do nosso país. Em função da quarentena acabamos não saindo mais de casa, a não ser para fazer coisas básicas, essenciais, como supermercado, farmácia, médico. Mas com esse tempo frio e chuvoso, não poder sair de casa nem é tão ruim assim, e a tão malfadada quarentena se torna quase uma benção.
As tardes rolam soltas, regadas a café ou chá quente, leituras, música, e outras mordomiazinhas que gostamos de nos dar. Quem pode se dar esses luxos, deve agradecer aos céus, porque tem muita gente que não tem nenhum conforto, nem casa, nem café quente, nem comida, nem teto. E essas diferenças da humanidade sempre me inquietaram. Muito militei pela igualdade de classes, pela divisão justa da riqueza, por um mundo melhor. Hoje essas crenças ainda latem dentro de mim, porém com menos obstinação. O tempo nos faz maduros e realistas demais. Nossos sonhos ficam um tanto dormentes. Não sei até onde isso é bom ou ruim – tenho dúvidas!
Mas voltamos à tarde de inverno aqui em casa. Tenho algumas ações para fazer. Os documentos estão sobre minha escrivaninha há quase um mês, olhando para mim, atiçando minha conduta, porém me extravio entre outros afazeres, leituras, vídeos... A disciplina foi para o brejo e não encontrou caminho de volta. Fico eu perdida em pensamentos e condutas, desviada do foco. Já me perdi do caminho para Ítaca. Mas isso não importa. Não quero apressar a viagem, só quero sorver este café recém passado, olhar a amoreira da minha janela que já está cheia de folhas e pequenos frutos verdes. A única certeza que tenho é que em breve, com o primeiro calorzinho que der, ela se fechará toda em folhas e frutos maduros, e os pássaros voltarão, cantando, produzindo ninhos, parindo filhotes. São as belezas do caminho. É a vida que segue.