sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

ROSÁRIO

Numa tarde de sexta-feira de inverno, recebi em casa aquela mulher. Corpulenta, de cabelos longos, espessos e escuros.  Entre trocas de sorrisos e abraços, convidei-a para sentar. Iniciou seu trabalho de manicure e nesse meio tempo, servi um chá para nós. Enquanto ela tirava os apetrechos do nécessaire, meus pés ficaram de molho na bacia de água morna.

Entre chás e cutículas, foi discorrendo intimidades. Ela me contava, com muito pesar, os descalabros do marido. Conhecera ele há vinte e quatro anos atrás, numa fábrica onde ambos trabalhavam; que se apaixonou logo e um mês depois, cheia de malas, ela se foi ao encontro dele para ficar; que alguns da família dele disseram: ‘filha, você é tão jovem e bonita, fica aqui não, volta para sua casa’. A mãe, a amiga, a vizinha... todas alertaram da aventura em que estava se colocando. Ela não ouviu ninguém, estava obstinada por morar com aquele homem. Logo veio uma filha, e já foi o tempo suficiente para aperceber-se do equívoco consumado. Tentou voltar para a casa dos pais, mas o homem foi atrás e a trouxe de volta. Engravidou do segundo filho, e as exiguidades só aumentaram. Ela ralava no trabalho da casa e o homem na boemia, cachaça, jogo e mulher, costumes próprios daqueles machos ribeirinhos. Vieram outros filhos e mais adversidades. Eram palavras de rebaixamento, maneiras egoístas, joguinhos emocionais... Junto com os anos que passaram, o corpo se transformou, os desgostos se multiplicaram, a autoestima zerou. O sofrimento foi enlutando seu coração e ela sustentava toda a dor daquele relacionamento abusivo. Agora, ‘fazia unhas’ para ter seu dinheirinho, porque ele colocava o pouco que ganhava na farra... e desatou em um choro só!

As lágrimas rolaram no seu rosto, desaguaram entre nossas mãos e desembocaram na bacia que molhava meus pés, e ali se diluíram. Foi um momento de comoção. Eu não sabia direito o que fazer, se confortava, se oferecia um copo d’água, se rezava, ou me aliava àquela tristeza toda e chorava também. Pude perceber o quanto aquela mulher, fisicamente forte, estava quebrada por dentro, frágil, desabrigada da vida e de si.  Amparei com as palavras de apoio que consegui produzir naquele momento doído. Era uma mulher como eu, guerreira, com seus dilemas e penas. Achei melhor parar o trabalho, servir mais chá.  Fiz mais, cortei um pedaço do bolo de milho quentinho que eu recém tinha tirado do forno e coloquei para nós. Mostrei interesse em ouvir, acolher, orientar.

Lá fora, o vento sudoeste soprava da Lagoa, sacolejando as vidraças, sinalizando mudanças. Nós duas, assim ficamos, tarde a dentro, desfiando nosso rosário da paixão, compondo sorrisos e tecendo projetos de liberdade.  

sábado, 26 de setembro de 2020

 

SURPRESA DE ANIVERSÁRIO

 

Naquela manhã de setembro acordei de humor nada bom. Era meu aniversário de cinquenta e sete anos. Estava envelhecendo e o tempo escorrendo como azeite pelas minhas mãos. No meio de uma pandemia, com uma protrusão me incomodando a lombar, fazendo fisioterapia, tendo que tomar hormônios, cálcio, colágeno, vitamina D e outro escambau de remédios, não consegui encontrar muitas razões para estar lépida e faceira. Minha sobrinha havia dito que faria o almoço, já me senti melhor em poder ficar longe da cozinha. Voltei da fisioterapia e fui pegar meu marido no trabalho. Ele perguntou como estava o dia do meu aniversário. Eu respondi com outra pergunta: e o meu presente?  Ele: tu já recebeste muitos presentes. Eu: é por isso que os casamentos acabam e depois não se sabe o porquê.

Entramos em casa e minha sobrinha já estava com uma moqueca de tilápia prontinha, exalando um cheiro gostoso na minha cozinha. Amei ela naquele momento e odiei meu marido porque ele é quem deveria estar na cozinha no dia do meu aniversário. Mas isso era exigir demais dele que não tem aptidões culinárias. Sempre tive inveja de mulheres cujos maridos são verdadeiros ‘mestre cuca’. Porém nada é perfeito e ele tem muitas outras habilidades e qualidades.  

Eu tinha feito um bolinho de milho e convidado apenas a Vivi, minha amiga e vizinha para tomar um cafezinho comigo depois das 14h. Meu marido almoçou e saiu logo, apressado, minha sobrinha também parecia preocupada e enquanto eu lavava a louça do almoço ela começou a arrumar a mesa para o café. Pegou as melhores louças e colocou quatro jogos na mesa. Não entendi, porque era só eu, ela e Vivi. Ela disse: o Ale (marido) também vai vir. Estranhei porque ele nunca vinha tomar café quando eu estava com alguma amiga em casa.

Nisso toca a campainha, minha amiga tinha chegado. Ela me abraçou e me deu um conjunto de sombra para os olhos, bem como eu precisava. Nisso minha sobrinha entra em casa com uma Pavlova linda (é um bolo feito só com claras de ovos e cobertos com frutas vermelhas – delícia). E nesse mesmo instante meu marido chega com um pacote enorme nas mãos e um buquê de flores. Só então me dei conta que estava tendo uma surpresa de aniversário. Ganhei dele um teclado, que ele me prometera há tempos, mas eu já nem contava mais com isso.

Sentamos todos na mesa e saboreamos o bolo com café e bela prosa. Assim, o dia dos meus cinquenta e sete anos foi muito mais prazeroso do que eu pensava. Acabei o dia bem feliz, com pessoas que amo, só faltou meu filho, amor maior que mora longe.

Por isso a gente sempre deve ser otimista com a vida e com as pessoas, porque elas podem nos surpreender súbita e docemente, transformando nossos dias para melhor. Obrigada pelo carinho, meus amores!

 

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

 

COMPLETUDE

Particularidade, característica ou condição daquilo que é ou se apresenta de modo completo; perfeito. Isso é completude! Tal definição deve nos fazer lembrar do nosso estado de espírito, do nosso interior e também das circunstâncias. Como nos sentimos hoje? Em relação à vida profissional, amorosa, espiritual...

Eu não hesito em dizer que não me sinto completa. E acredito que boa parte da humanidade também não. Isso parece variar conforme o tempo. Há fases da vida da gente que a completude se apresenta plena (não sei se não estou falando uma cacofonia). O que quero dizer é que a gente passa por várias etapas, e tem períodos que estamos bem, felizes por quase nada. Enquanto em outras fases parece que o chão se abre sobre nossos pés e mergulhamos num buraco negro, num beco sem saída, num poço sem fundo, num caos!

Nos últimos anos tenho passado por momentos que eu mesma tenho dificuldade para definir. Todos meus atos necessitam de um esforço quase sobre humano da minha parte: levantar, começar o dia, ir ao mercado, à feira, ao trabalho que é o mais difícil. A vida social que antes já era escassa, agora zerou total. E eu me sinto mergulhada num grande precipício, pendurada por uma corda elástica, às vezes estou lá embaixo, às vezes a elasticidade me puxa para cima. Não caio, mas também não saio!

Em outros tempos só de ver a amoreira cheia de folhas e frutos na minha janela e os sabiás cantando com a chegada da primavera, já me enchia de uma alegria até boba. Hoje o sentimento é outro, quase neutro. Coloco toda esta apatia na conta da menopausa, que tem me trazido tormentos nunca imaginados.

Não sei se isso acontece com vocês também, meus queridos leitores. Podem abrir seus corações comigo, afinal estamos vivendo um tempo em que abraçar não dá, beijar nem pensar, tudo é feito com distanciamento. Falar sobre nossos sentimentos pode ser uma boa saída terapêutica para nossa angústia e solidão.

Talvez eu esteja discutindo sobre coisas que você não sente, mas um outro se reconhece como eu. Porque não é possível que esta sensação de incompletude só acontece comigo?

O que posso dizer é que tenho me empenhado muito para obter o mínimo de completude nesses dias. Escrever ajuda muito, porém, como dizia um amigo, eu me saboto e não escrevo. Serei teimosa e pessimista com a vida?